sábado, 24 de maio de 2014

Como sofre a nossa classe média...

O Globo Repórter de ontem foi divertidíssimo. Um “classe média sofre” daqueles. Eu quase chorei de peninha da nossa classe média pauperizada, endividada e atolada nos financiamentos que não têm mais dinheiro para fazer umas comprinhas no shopping, dar uma renovada no guarda-roupa e curtir as noitadas. Os coitadinhos, agora, têm de passar pela vergonha inominável de levar cerveja, água e comida de casa para se divertir cazamiga na frente dos bares. Ó, céus! Ó, mar!! Ó, vida!!! Que mundo cruel!!!!

 
Há também quem não tenha grana nem para pagar a taxa de consumação dos bares, e por isso passou a reunir a turma, fazer aquela boa e velha vaquinha para comprar cerveja e petiscos e se reunir em casa. É, meu povo, não tá fácil pra ninguém mesmo.

Eu só reparei uma coisinha: q
uando são os pobres que levam comida e bebida numa caixa de isopor à praia por não ter condições de arcar com os altos preços cobrados pelos barraqueiros, são "farofeiros". (São clássicas as cenas das novelas e seriados escritos por Miguel Falabella esculachando as pessoas comendo um churrasquinho e tomando uma cerva no Piscinão de Ramos aos fins de semana.) Já quando a classe média pauperizada e atolada nos financiamentos leva comida e bebida numa caixa de isopor por não ter mais poder financeiro para arcar com os altos custos da balada, trata-se do "isoporzinho", um "movimento organizado contra a carestia". 

Ou seja, mais uma vez, a classe média se apropria dos costumes dos pobres, das estratégias de sobrevivência criadas por quem tem de viver com pouco, dá outro nome, reconfigura com ares de sofisticação, e ainda tira onda com a nossa cara.

Minha amiga Keise Valverde, estudante de Direito e futura juíza, acabou de dar mais um exemplo dessa apropriação dos costumes da pobreza: o bom e velho churrascão na laje, coisa de pobre e favelado, está sendo feito pela classe média em condomínios de alto padrão na varanda dos apartamentos e rebatizado com o pomposo nome de “Cozinha Gourmet”. Quando isso é feito na laje do barraco do favelado, é breguice reprovável. Já na varanda dos apartamentos, a população olha como se fosse “coisa de gente chique”.


(Que coisa, né, gente?! A coisa tá tão feia que a classe média brasileira não tem nem mais condições de comemorar as alegrias e/ou fazer a sagrada happy hour numa churrascaria. Ê povo que vive de aparências! A galera come ovo frito e arrota caviar.) 

Tudo isso só é bonito, revolucionário e contestador da ordem capitalista quando não é um pobre que está fazendo, como disse a companheira e baderneira Inajara Salles. Vá você fazer a mesma coisa para ver qual será a reação do povo! Ela disse que, certa vez, causou estranheza pública ao sacar e comer uma banana dentro de um shopping. Eu não vou nem contar o deboche que eu tinha de aguentar dos meus colegas de turma nos meus tempos de graduação quando eu comprava banana para comer durante as aulas de História da África.

Na segunda parte do programa, foi exibido o martírio de uma loiruda da classe média paulistana que, agora, têm de passar pelo tormento de comprar roupas novas só quando há promoções - coisa que a gente faz desde sempre e a nossa imprensa escrota não está nem aí. Tadinha da bichinha! Ela só dispõe atualmente de reles cem reais para adquirir sapatos, blusas, vestidos e calças novas – sendo que ela tem um closet recheado de roupas e sapatos que nunca foram usados. Enquanto isso, eu estou aqui esperando o fechamento da fatura do cartão para comprar um tênis novo parcelado em cinco vezes sem juros, com primeiro pagamento só em julho.

Uma calça nova, então, só “de caju em caju”, como dizem os mais saudosos. E olhe lá. Eu preciso inspecionar as que tenho em casa para ver qual é a que está mais surrada e colocá-la para trabalhar. As mais conservadinhas, eu deixo separadas para não chegar a um evento mais requintado e descontraído com a mesma cara de quem vai à guerra todo dia. 

Na última parte do programa, foi exibida a grande descoberta feita pela nossa classe média escorchada de impostos para driblar os altos preços cobrados pelos restaurantes: levar marmita. O curioso é que eu faço isso todo dia e ninguém me entrevista. Minha esposa, coitada, fez isso durante os cinco anos de graduação dela e ninguém a procurou para fazer uma matéria sobre isso. Por que será, minha gente?

Ela ainda fez questão de ressaltar que não levava somente o almoço. Havia dias em que ela levava comida para todas as refeições diárias: iogurte para o desjejum (se ela parasse para desjejuar em casa, perderia a marinete e chegaria atrasada às aulas), água, suco, almoço, frutas e biscoitinhos para morder durante as aulas e as viagens de buzu da faculdade para o trabalho, e o jantar. Um peso desgraçado que a pobrezinha tinha de carregar todo santo dia, e nunca apareceu um sacana de um jornalista para fazer uma matéria sobre a rotina dela.


Ela também destacou que as colegas de turma faziam a maior chacota quando ela metia a mão na bolsa para tirar um lanche. Um quiquiqui cacacá danado. Tanto na faculdade quanto em casa. Todos e todas diziam que a mochila dela parecia lancheira de criança de tanta comida que ela carregava dentro. (Estavam todos na mesma situação que ela, mas tinham vergonha de fazer o que ela fazia. Ninguém levava porra nenhuma, debochava da cara dela, mas, às escondidas, pedia um biscoitinho para suportar a fome até a hora do almoço.)

Só que quando somos nós que fazemos isso, ninguém dá atenção. Ninguém quer ver. Ninguém quer mostrar. Já quando é alguém da classe média, é um deus-nos-acuda.

Uma coisa eu aprendi depois que comecei a me envolver com esse negócio de Movimento Negro: quando os ricos começam a reclamar, os pobres já estão mortos há muito tempo. 

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