Ai, esse Facebook que me
domina! Não há um dia em que eu não veja algo que me fascine, me revolte, me
surpreenda – positiva ou negativamente - ou que me deixe intrigado ao acessar diariamente
essa mídia social.
Hoje de manhã, acessei-o e
me deparei com a foto abaixo. Mais uma vez, comecei a escrever um comentário a
ser colocado no perfil da pessoa que o repassou, só que, como sempre, saiu
tanta coisa que eu resolvi reelaborá-lo, transformá-lo em texto e publicá-lo no
meu bloguito. Eu já cheguei à conclusão de que, como já disse em outro texto, os meus escritos só saem da
mesma forma que caldo de cana e os repentes de Caju e Castanha: feitos na hora.
Eu cresci vendo a minha avó
e a minha mãe dizerem que as melhores comidas que já prepararam sempre saíram
na base do improviso. Em épocas de despensa mirrada e geladeira vazia, quando
nós estávamos “com os dentes na parede, roendo o reboco para comer os tijolos”,
como disse meu tio Valter, o procedimento era sempre o mesmo: misturar um
tempero ali, umas pontinhas de carne de sertão e chouriça frita aqui, um resto
de feijão acolá; jogar tudo dentro de uma panela, acrescentar azeite de dendê e
o produto final dessas misturebas sempre foram iguarias deliciosas que elas
nunca conseguiram fazer de novo. Espero eu que aconteça a mesma coisa com esse
texto.
Ao trabalho.
Não me agrada nem um pouco
ver mensagens desse tipo associadas a fotos como essa porque isso me parece
muito escroto. Como diz Gilberto Gil, “repare”: o menino estuda em condições
subumanas, sem a mínima condição necessária para uma pessoa estudar e aprender,
sentado em um garrafão de gasolina, com o caderno apoiado sobre um banquinho e
com a coluna toda curvada – em total desconforto, o que lhe renderá uma
tremenda escoliose em pouquíssimo tempo. E se o ambiente não for bem iluminado,
ele fatalmente desenvolverá problemas oftalmológicos com a mesma rapidez que
adquirir problemas de coluna.
Provavelmente, ele deve ser
mais um subalimentado que tem de revirar sacos de lixo em aterros sanitários em busca do que comer ou revirar as lixeiras da Estação
Pirajá e catar um resto de acarajé cuspido para aplacar a fome. (Eu já vi isso um
dia à noite, na volta do trabalho, e nunca esqueci – e nunca esquecerei - essa
cena que as outras pessoas que estavam na fila nem viram de tão naturalizada
que é. “Não quero ter de achar normal ver um mano meu coberto com jornal”, como
disseram os Racionais MCs na música Rapaz Comum.) Deve também
morar longe pacas da "escola" e tem de ir e voltar todo dia a pé por
falta de dinheiro para pagar a passagem do buzu ou por morar em um lugar de
difícil acesso e não ter transporte escolar. Como se isso tudo não bastase, ele
muito provavelmente tem de trabalhar o dia inteiro vendendo picolé na Lapa ou
limpando para-brisa de carro na sinaleira do Iguatemi.
Qual é a condição que esse
menino tem de obter um bom aprendizado? Qual é a chance que esse cara tem de se
tornar médico, advogado, professor, engenheiro mecatrônico ou ministro do STF
em comparação a uma criança que teve todo o suporte necessário para estudar e
aprender? Que tem livros à farta em casa, internet banda larga à disposição,
comida na mesa e não precisa trabalhar desde cedo para sobreviver?
É muito fácil e canalha da
nossa parte olhar para a cara desse menino e dizer que basta apenas se esforçar
para conseguir chegar lá. Que as oportunidades são iguais para todos, e só não
as aproveita quem não quer. Que ele reclama demais. Que não é a escola que faz
o aluno, e sim o aluno que faz a escola. Que só não vira "alguém na vida" quem não quer nada com a hora do
Brasil. Que “esses meninos não querem nada”. Que basta batalhar, ser perseverante, ter força de vontade e não
desistir que a vitória é certa. Se vire, dê seus pulos, trabalhe que você
consegue, se esforce, se empenhe, vá à luta, porra!, seja brasileiro, não
desista nunca!!
Só é possível lutar quando
há condições. Quando, após ter feito vestibular duas vezes e não ter passado, a
minha mãe perguntou se eu queria fazer de novo, e, após ter dito que sim, ela
disse que eu teria de dar o meu jeito porque ela não tinha mais dinheiro para
isso, eu fui à luta. Aconselhado por Carlão, um colega de cursinho, procurei o
professor de Matemática, George Dória (agradeço publicamente a ele aqui),
contei o meu rosário de lágrimas e pedi uma ajuda. E ele deu: disse que não
podia me conceder bolsa integral, mas me colocar para pagar só a taxa do
módulo. Em termos práticos: reduziu a mensalidade de R$ 90 para R$ 30. Eu
aceitei – mesmo sabendo que nem assim eu teria condições de pagar. Como disse
Mano Brown, para quem é pobre, preto, favelado e precisa superar 350 anos de
atraso para vencer, não tem essa de “talvez dê”, “vamos ver se dá” ou “não vai
dar”. Tem que dar! Vamos pra cima!!
Não tinha grana para custear
o deslocamento até o Centro. Por isso, eu ia andando de manhã cedo de
Cajazeiras até Castelo Branco, às 5:15h, bebia um copo d’água e colocava uma
pitada de açúcar debaixo da língua, deixava a minha mãe chorando de desespero e
com taquicardia em casa com medo de alguém me atacar no meio do caminho para
pegar carona com um colega de turma (Luís Alberto, a quem eu agradeço até hoje
pelo apoio). Se chovesse no meio do caminho, eu não poderia parar, pois, se
parasse, eu perderia a carona.
Às vezes, ele, ao ver a minha cara de fome, me
chamava para tomar o café da manhã junto com ele. Quando ele não fazia isso, eu
tinha de me virar: pedia dinheiro a um e a outro descarada e despudoradamente para
comprar um suco de laranja e um pacote de biscoito recheado (hábito que deixou
os meus níveis de colesterol na estratosfera) sob pena de desmaiar de fome
enquanto o professor de Matemática estava dando aula sobre trigonometria.
Quando não rolava carona, eu
tinha de ir de ônibus – mesmo sem um puto no bolso. Na hora de descer, eu abria
a porta do buzu na tora - ajudado pelos peões de obra de Cajazeiras que, assim
como eu, não tinham dinheiro para pagar a passagem da marinete. Descia na
última passarela da Av. Bonocô sentido Vale do Ogunjá e ia andando até a
Mouraria (quem quer ou precisa viajar sem pagar precisa descer alguns pontos
antes como medida de segurança). Estudava o dia inteiro, porque a minha mãe
segurava as pontas em casa – se endividando horrores para isso, é claro. E, já
na reta final da preparação para o vestibular, eu, após ser proibido de entrar
por estar inadimplente, comecei a catar latas de alumínio no lixo para
conseguir algum dinheiro. A situação estava tão periclitante que houve dias em
que a minha mãe só foi trabalhar porque eu peguei parte do dinheiro obtido com
a venda das latas e dei a ela para pagar a passagem.
Em dezembro, mês de revisão
final, eu voltei ao cursinho e pedi ao mesmo professor para entrar de novo. Ele,
mais uma vez, me colocou para dentro e eu pude pegar mais algumas dicas e fazer
a prova. Dicas essenciais para eu conseguir a aprovação no vestibular da UFBA
em 2002.
Até hoje, eu me lembro do
dia em que eu soube da notícia, 28 de fevereiro de 2002. Estava voltando de
Castelo Branco após uma catada de latinha, resolvi passar na casa de Íris, uma
grande amiga (onde está você, criatura?) e encontrei a saudosa mãe dela na
janela que, ao me ver, disse que o resultado já havia saído e que Íris havia
salvado a lista para mim. Ao ver o meu nome lá, saí pulando de
alegria pela rua da casa dela até a minha. Quando cheguei em casa, encontrei
meu irmão mais velho chorando, gritando e fazendo o maior parnavueiro no prédio
por conta da minha aprovação. Ele soube porque Diego e Eliana, colegas de turma
(onde estão vocês?), viram meu nome na lista e ligaram para dar as boas novas.
Como eu não estava em casa, ele e ela passaram o recado para o meu irmão. Minha
mãe ligou em seguida e meu irmão passou a notícia para ela por telefone. Minha
mãe tresloucou na rua. Chegou em casa vibrando e chorando loucamente.
Impossível esquecer a
comemoração: eu, na frente do prédio em que morei, ao lado de Welber e Juninho,
dois vizinhos, pulando e cantando New
York, New York.
Escrevi tudo isso para dizer
que se não fosse o apoio de todas essas pessoas, eu não teria conseguido porra
nenhuma. Sozinho, ninguém faz bulufas de nada. Se dependesse somente de mim, eu
já estaria na passarela Iguatemi-Rodoviária vendendo óculos Varney (é assim que
escreve?), na Av. Sete ou no Comércio vendendo DVD pirata ou com uma guia de
cafezinho na Praça Municipal há muito tempo. É escroto e cínico pra caralho
dizer que uma pessoa não venceu porque não se esforçou o suficiente. As pessoas
não vencem porque não encontram apoio! Porque não acharam quem desse uma
ajudinha. E muitas vezes essa ajuda nem precisa ser financeira, mas apenas uma
palavra de motivação. De alguém que olhe para aquele menino e diga “você pode,
você é capaz, eu tô contigo; eu tenho pouco, mas esse pouco está à sua
disposição”.
É possível que o menino da
foto nem isso tenha tido. Ele certamente viveu em meio à desesperança, à
invisibilidade social, criado por pessoas que, por terem vivido sob as mesmas
condições que ele, nunca se viram como capazes de chegar à universidade ou de
ter um bom emprego. Pessoas que foram jogadas na sarjeta social e obrigadas a
viver assim. Que nunca tiveram comida na mesa, que nunca tiveram acesso à
educação escolar, que cresceram ouvindo que estudo é “coisa de rico” e que
“pobre tem que trabalhar”. Que sempre o massacraram psicologicamente dizendo que ele era burro e que não serviria para nada que preste na vida. Ou que nunca incentivaram o menino a estudar não por
acharem que isso não é importante, mas porque precisavam dele trabalhando e
trazendo dinheiro para casa todo dia. Caso contrário, todos e todas dormiriam
“com a barriga nas costas”.
Poderia escrever mais
coisas, mas vou parar por aqui porque senão o texto ficará longo demais e eu
certamente me perderei. Se quiserem dialogar comigo, fiquem à vontade.
Sobre meritocracia e privilégios sociais, Alex Castro produziu uma série maravilhosa que eu só não vou citar aqui porque o blog dele foi encerrado. Mas há uma palestra magistral proferida pelo professor Hélio Santos sobre o assunto, e que eu recomendo expressamente que vocês vejam se quiserem entender o que é o mérito em uma sociedade desigual, racista e excludente como a nossa:
Sobre meritocracia e privilégios sociais, Alex Castro produziu uma série maravilhosa que eu só não vou citar aqui porque o blog dele foi encerrado. Mas há uma palestra magistral proferida pelo professor Hélio Santos sobre o assunto, e que eu recomendo expressamente que vocês vejam se quiserem entender o que é o mérito em uma sociedade desigual, racista e excludente como a nossa: