terça-feira, 11 de junho de 2013

A representação das pessoas negras nas novelas: algumas considerações

Vamos falar de novela. Acabei de ver na internet uma notinha a respeito de críticas que estão sendo feitas à novela Amor à Vida, exibida pela Rede Globo no horário das 21h. Diz a nota que os e as internautas não estão gostando nem um pouco de ver que não há nenhum ator e nenhuma atriz negras na trama. Há quem diga que “não entende por que há personagens gays, mas não há personagens negras e negros”. Já outro diz que “A Globo mantém o seu racismo numa novela sem atores negros”. Passemos adiante.

Eu também fiquei muito incomodado com isso, além de não ter gostado do enredo da novela. Fiz um esforço para assistir aos dois primeiros capítulos, mas a coisa não me agradou nem um pouco. Tentei assistir a mais alguns, mas perdi a paciência principalmente ao ver as cenas da personagem Valdirene, interpretada por Tatá Werneck. A personagem é muito sem graça e a atriz parece que ou não entende muito bem da coisa ou ainda está meio perdida e não conseguiu se localizar. A minha opinião é a de um telespectador, portanto eu deixarei as críticas aos detalhes mais específicos para quem entende do assunto.

O diretor de cinema Joel Zito Araújo, uma das maiores autoridades brasileiras sobre o negro nas novelas, que assina obras como o documentário A Negação do Brasil e Raça, este último em cartaz nos cinemas, manifestou-se através do seu perfil no Facebook a respeito da novela citada acima. Disse ele que:




Por conta dessa declaração, eu resolvi dialogar com ele (vejam só o tamanho da minha pretensão). Penso que a novela Lado a Lado não foi produzida porque a Rede Globo se tornou mais progressista e engajada na superação das desigualdades sociorraciais no Brasil (o que esperar de uma emissora comandada por Ali Kamel?), e sim como uma maneira que a Central Globo de Produção encontrou de desviar a atenção e calar a boca do movimento negro. Pois é bom lembrar que esta novela foi ao ar justamente no momento em que as críticas à personagem Adelaide, interpretada por Rodrigo Sant'anna no Zorra Total, estavam ficando cada vez mais acintosas e contundentes.


Mulher, negra, pobre, mal-vestida, que "fala errado", desdentada, e que só se apresenta de maneira ridícula, vergonhosa e repugnante. Se isso não é uma agressão às mulheres negras desse país, o que é então? Se quiserem entender mais sobre esse tipo de "humor", veja Bamboozled - A Hora do Show.

Isso é tão procedente que a Globo escalou ninguém menos do que Lázaro Ramos para ser o protagonista da trama, e o colocou para contracenar com outra grande atriz brasileira que é Camila Pitanga e outro grande ator que é Milton Gonçalves - que dispensa comentários.

Ramos é o mesmo ator que comanda o Programa Espelho, exibido toda segunda-feira no Canal Brasil às 21:30h, e que já levou à sua cadeira de entrevistas referências do movimento negro na atualidade a exemplo do ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira, o Caó, autor da lei 7.716/89, que tipificou o racismo como crime inafiançável e imprescritível, e que, em sua homenagem, foi batizada como Lei Caó; o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa; a suplente de vereadora e pedagoga Claudete Alves, autora do livro Virou Regra?, em que faz uma dura crítica ao preconceito dispensado às mulheres negras no mercado matrimonial; a filósofa, militante do movimento de mulheres negras e presidente do Instituto Geledés, Sueli Carneiro; o etnólogo cubano Carlos Moore, autor dos livros Racismo e Sociedade e Fela: Esta Vida Puta, biografia autorizada do cantor e ativista social nigeriano Fela Kuti; a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, autora do livro Um Defeito de Cor, que é uma das melhores representações ficcionais da escravidão no Brasil; e Abdias do Nascimento, maior referência da luta antirracista no Brasil, fundador da Frente Negra Brasileira e do Teatro Experimental do Negro, e autor do livro O Genocídio do Negro Brasileiro.

Além disso, Ramos costuma citar como dicas de leitura várias obras basilares para a compreensão do racismo como fator estruturante e regulador das relações sociais no Brasil, a exemplo de A Discriminação do Negro no Livro Didático, da pedagoga Ana Célia da Silva; Da Diáspora, de Stuart Hall; o Relatório Anual das Desigualdades Raciais, produzido pelo LAESER (Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem em seus quadros o economista Marcelo Paixão; o Mapa da Violência 2012, organizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, dentre outras.

Em suma, a Central Globo de Produção sabia muito bem que Lázaro Ramos era o homem certo para protagonizar uma novela como Lado a Lado. Afinal, os altos generais da Globo sabem quem Ramos é e principalmente de onde ele veio. Acrescente-se a isso as personagens Tia Jurema, interpretada por Zezeh Barbosa (o primeiro trabalho respeitável feito por ela, visto que as personagens concebidas por Miguel Falabella sempre foram horríveis, vide a Condessa Duvivier da novela Aquele Beijo, exibida em 2011); Caniço, interpretado por Marcello Melo Jr. (as cenas de luta entre Caniço e Zé Navalha, interpretado por Ramos, ficarão eternamente na minha memória); Chico, vivido por César Mello (que interpretou o episódio do “pó de arroz”, em que o jogador Carlos Alberto, negro, teve de se pintar de branco para ser aceito no time do Fluminense em 1914), dentre outros. As crônicas escritas por Cidinha da Silva analisam muito bem o desenrolar dessa novela. Entrem no blog dela e procurem. Vocês não vão se arrepender.

Depois de ter deixado a galera extasiada, tudo voltou ao que era antes.

Essa estratégia funcionou tão bem que no mesmo ano em que a novela Lado a Lado foi ao ar e, consequentemente, a população negra ficou radiante de felicidade ao se ver representada na telinha, a Rede Globo, em uma atitude de completo deboche às manifestações dos grupos organizados na luta contra o racismo, produziu uma série de DVDs com os melhores momentos da personagem Adelaide no tal "humorístico". E o mais surpreendente de tudo é que os mesmos grupos que estavam combatendo a tal personagem parecem que não viram (ou, se viram, não deram a menor importância) essa chacota pública que a Vênus Platinada fez com as nossas reivindicações.

Debochar da nossa cara é algo que a Globo faz com maestria. Vale dizer que o DVD de Adelaide foi lançado em novembro de 2012. Justo o mês de novembro, que, depois de muita luta, foi consagrado como Mês da Consciência Negra. A mesma coisa já tinha sido feita em novembro de 2010 numa cena da novela Viver a Vida, em que a personagem Tereza Saldanha, interpretada por Lília Cabral, tascou uma sonora bofetada na cara da protagonista Helena, vivida por Taís Araújo (a primeira Helena negra de Manoel Carlos), numa cena extremamente humilhante em que Helena ficou de joelhos na frente de Tereza implorando por perdão, e recebeu como resposta o bofetaço no rosto. Essa cena foi exibida em pleno dia 20, que é o Dia da Consciência Negra. Se isso não foi uma provocação descarada, eu não sei de mais nada.



Para finalizar: além de calar a boca do movimento negro, a Rede Globo abriu um precedente favorabilíssimo. Pois da próxima vez em que a referida emissora for acusada de racismo, podem ter certeza de que os seus altos oficiais virão a público com o mesmo argumento de sempre: "Racistas, nós? Que absurdo! Nós até produzimos recentemente uma novela com um elenco majoritariamente negro, com um ator negro como personagem principal. Calúnia!! Os patrulheiros do politicamente correto não nos deixam em paz!!!"