sexta-feira, 18 de maio de 2012

"O ciúme é o perfume do amor". Então, eu quero permanecer fedorento.

Acabei de ler na internet a seguinte nota: “Marido ciumento faz corredora vaidosa adotar meião de futebol para ficar menos ‘pelada’”. O texto conta o caso de Rosângela dos Santos, atleta brasileira dos 100m rasos, que, devido aos ciúmes do marido, funcionário da Marinha, “decidiu” calçar um par de meiões típicos dos e das praticantes do futebol para “amenizar a nudez” durante as competições (!). Ele não gostou de ver a mulher dele lá, com tudo de fora, exibindo o corpão sarado para todo mundo ver, reclamou que a roupa usada por ela nas competições é muito curta, e, como forma de “acalmar a fera”, ela resolveu colocar o tal meião. Ela ainda disse, de acordo com a reportagem, que o marido falou que ela está até “mais bonita” com o acessório extra, numa clara tentativa de disfarçar o caráter invasivo e desrespeitoso da “recomendação”.

Eu não sei o que é mais grave: o marido dela ter imposto uma peça de roupa ao vestuário para ela ficar “menos pelada” ou ela ter concordado, aceitado e feito o que o marido/dono dela mandou “em nome do amor”. E para completar, no final da nota, ela ainda diz que o sonho dela é se tornar passista de escola de samba, mas a tia dela não deixa por causa das roupas que uma passista (não) precisa usar na hora de sambar.
Ou seja, Rosângela faz o que o marido dela quer, o que a tia dela quer, mas não faz o que ELA quer. A vida é dela, o corpo é dela, o sonho é dela, mas ela renuncia a tudo isso para não desagradar a família.
Fico me perguntando: quando (e se) ela dará um basta nisso tudo e passará a vestir-se como quiser e fazer o que bem entender com a vida e o corpo dela? Que sociedade é essa que deixa os homens viverem como quiserem, mas a todo instante estão ditando normas e regras sobre o corpo feminino? Por que um homem pode sair às ruas sem camisa, exibindo o tórax bombado, mas uma mulher não pode exibir as pernas em uma competição de atletismo?
Regina Navarro já escreveu muito sobre isso, e eu não pretendo ser caixa de ressonância dos textos dela (ou pelo menos eu me comprometo a tentar não ser). O ciúme é um sentimento altamente destrutivo, mas infelizmente é passado para nós como uma coisa positiva; há até quem diga que “o ciúme é o perfume do amor”, um tempero a mais na relação (como se fossem necessárias demonstrações constantes de posse para uma pessoa se sentir amada). É nada mais do que um conjunto de práticas criadas para controlar o corpo da mulher de um modo menos indolor (se é que posso usar essa expressão). Controlar as roupas, o decote da blusa, o tamanho do vestido, da saia ou da bermuda, o uso de maquiagem, a cor do esmalte das unhas, o cabelo solto ou preso, os horários, nada disso é visto como estratégia de dominação. Nãão!!! É para o bem delas, pô! As mulheres não sabem dirigir as próprias vidas, portanto nada mais natural que nós, homens, donos da razão, a protejamos delas mesmas. Sabe como é, né, mulher solta sem governo só faz merda!
Já vi e ouvi vários comentários de e sobre mulheres que ficaram revoltadas com os seus companheiros/namorados/maridos porque eles não sentem ciúmes delas. Lembro de uma vez em que a minha mãe disse que estava no ponto de ônibus e ouviu uma mulher dizer que o namorado dela era um banana porque não sentia ciúmes dela. “Ele me deixa usar a roupa que eu quiser. Eu posso usar vestido decotado, saia curta, shortinho atochado e aquele panaca não fala nada”, disse ela (de acordo com a minha mãe, é claro). E eu fiquei pensando: porra, se ela tem liberdade para usar a roupa que bem entender e o namorado não fala nada, por que ela está recriminando o comportamento do cara ao invés de comemorar a conduta dele? O que essa mulher quer afinal?
Algumas mulheres parecem demonstrar que gostam e até veneram a ideia de serem dominadas pelos seus “donos”, coisa que me deixa mais assustado ainda por saber que elas mesmas acreditam que devem se submeter aos desmandos do companheiro/namorado/marido porque “homem é assim mesmo”. Há cerca de quinze anos, época em que eu ainda era estudante secundarista, uma colega de escola tentou me convencer por inúmeros argumentos, retirados principalmente da Bíblia, de que a mulher tem que ser submissa ao homem. Diante dessa convicção, a única coisa que me restou foi ficar calado.
Em conversa com um amigo, ele disse que uma namorada dele queria porque queria que ele sentisse ciúmes dela – e desse demonstrações públicas disso, é claro. Quando ele disse que não faria escândalo público ao vê-la conversando com outro homem porque ele não é dono do corpo das mulheres que se relacionam com ele, e que, por conta disso, ela tem o direito de conversar com qualquer pessoa, ela simplesmente o dispensou. Eu nem ao menos a conheço, mas gostaria muito de saber com que tipo de homem ela está se envolvendo agora.
Esse discurso do ciúme como uma coisa boa e necessária a qualquer relacionamento é presente nas nossas vidas porque é reforçado a todo instante através das coisas mais banais (músicas, novelas, filmes, histórias românticas, romances de banca de revista...). São histórias tão batidas e rebatidas que as pessoas adotam isso como parâmetros para as suas vidas e não conseguem se relacionar com ninguém sem exercer controle sobre a outra/outro, sem exigir relatório detalhado e circunstanciado das atividades diárias, sem fuçar o celular, o email e o perfil da outra pessoa nas redes sociais. Em entrevista à Revista Sexy de novembro de 2011, Carol Nakamura, assistente de palco do Domingão do Faustão, declarou que só namora um homem que passar a senha do perfil dele no Facebook para ela. À pergunta “Você é ciumenta?”, ela respondeu: “Extremamente! Sou um pouco descontrolada quando fico com ciúme. Tenho que estar no controle das coisas. Tem gente que acha bizarro, mas eu não acho nada de mais. Só namoro com senha de Facebook. Se não faz nada de mais, por que eu não posso saber?”, declarou ela. Ainda bem que eu e ela vivemos em mundos totalmente distintos, pois eu não quero uma mulher dessa perto de mim nem com a porra!
Isso só reforça aquela idéia de posse sobre o outro. Que as pessoas, em um relacionamento afetivo-amoroso, têm de estar disponível aos nossos humores, satisfazer nossas vontades e caprichos a todo instante, incluindo aí nos completar e atender a todas as nossas necessidades. Aquele velho discurso da “alma gêmea”, da “outra metade da laranja”, tão conhecido entre nós.
Se, para ela, isso é normal, para mim, isso é inadmissível. Nunca fiz isso. Todas as mulheres que já se envolveram comigo tiveram total liberdade para vestir-se como quiserem e conversar com quem bem entenderem. Não costumo bisbilhotar o celular, a bolsa, os bolsos, nem furtar senhas de email e redes sociais de mulher nenhuma para saber se elas estão saindo com outros homens. Não fiz – e não faço – isso com elas para que elas nem pensem em fazer isso comigo. Esse papo de “quem ama sente ciúme” não cola. Eu acredito que quem ama respeita, e o fato de uma mulher estar se relacionando comigo não me dá o direito de exercer domínio sobre ela – nem a ela sobre mim, diga-se de passagem.
Como já disse, esse discurso é passado através das coisas mais banais. E vou citar exemplos: certa vez, estava escutando uma música de Belo em uma barraca de praia. Não sei o título da música (e nem me interessa); só gravei a parte em que ele diz que “atrás de um ditador, existe um grande amor”. Fiquei espantado com o que ouvi – e não era para menos. Afinal, ele está dizendo que um homem violento, que grita, ofende, maltrata, humilha e espanca a mulher; controla o corpo dela; diz o que ela deve ou não deve fazer; com quem ela deve ou não deve conversar; que tipo de roupa ela deve ou não deve vestir e estabelece horários para ela sair e voltar (com direito a cronometragem de tempo para punir o mínimo atraso) faz tudo isso... porque a ama! Ele age assim porque se importa e se preocupa com ela!! E esse discurso é introjetado na cabeça das pessoas por intermédio de uma música romântica, que fala de amor, com uma melodia agradável, voz gostosa, como se estivesse falando no ouvidinho dela...
Não sei se é nessa mesma música ou em outra que Belo inicia a canção pedindo perdão à namorada por ter mexido na bolsa e revirado a intimidade dela. Como sempre, com a mesma voz mansinha, falando no ouvidinho bem baixinho para ninguém ouvir. E ainda há mulheres que delirem e se derretam ao ouvir isso. Mais uma vez, o que me assusta é saber que muitas dessas mulheres se deixam manipular muito facilmente com besteirinhas do tipo que ouvem de muitos calhordas depois de uma discussão: “meu amor, me desculpe, eu só fiz isso porque eu te amo. Isso não vai mais acontecer, eu estava de cabeça quente”.
Em outro momento, escutei uma música do Exaltasamba em que Péricles canta: “se ela não tem dono/se ela não tem dono/ela é minha/ela é minha”. Trocando em miúdos: as mulheres são objetos passíveis de se tornarem propriedade de um homem. As mulheres têm de ter um dono, e as que não o tiverem estão automaticamente disponíveis. Eu só preciso pegar, levar e me apossar delas.
O machismo, o racismo e a homofobia são naturalizados nas mentes das pessoas assim mesmo: através de piadinhas, músicas, de palavras doces e palatáveis; de algo que as faça rir e delirar de emoção e prazer. E qualquer pessoa que se voltar contra isso será a mala-chata-insuportável da vez, que vê coisa onde não existe. Será possível que esse cara não desliga nem um minuto sequer? Nem na praia, de sunga, tomando sol e bebendo cerveja esse cara para um pouco? Tudo é racismo, tudo é preconceito. Porra, é só uma música, caralho!!!
Há também quem venha com o argumento de que "você não entendeu o que eu falei", "não foi isso que eu quis dizer"; "o que eu disse foi um equívoco, um comentário infeliz". Nós nunca entendemos nada. As pessoas nunca querem dizer o que dizem. Nunca sabemos interpretar porra de nada. 
Serão essas as críticas que eu receberei após a divulgação dessas maltraçadas linhas no mundo virtual. Podem vir, pois eu já estou preparado.

domingo, 13 de maio de 2012

Sobre o Dia das Mães. Sim, mas de que mães nós estamos falando?

Ontem, eu repassei uma postagem no Facebook sobre o Dia das Mães. Nela, havia um casal composto por um homem preto, uma mulher preta e uma criança preta com uma mensagem de felicitação pela data. Nada mais justo, pois, afinal de contas, o Dia das Mães caiu neste ano em 13 de maio, data em que se comemora 124 anos de abolição da escravatura (que eu prefiro chamar de 124 anos de chute na bunda), e que, por pressão dos movimentos sociais, foi ressignificada como Dia Nacional de Combate ao Racismo. E não só por isso. O que há de errado numa postagem de felicitação ao Dia das Mães que traga uma foto de pessoas pretas? O padrão é sermos caucasianos, de estirpe europeia?. Ou será que não existem mães pretas no nosso paraíso etnorracial?





Hoje, ao acessar o meu perfil, um conhecido meu escreveu: “Preto não é cor? Parabéns somente para as mulheres negras? Sem mais... aí não curti...”. Isso me enfureceu sobremaneira. Já dei uma resposta a ele lá mesmo no Facebook, mas resolvi dar uma resposta mais elaborada e publicar aqui para que mais pessoas tenham acesso.




Vou repetir o que eu já escrevi: qual é a sua, cara? Você já viu alguma propaganda do Dia das Mães com alguma negona? Alguém lembra que as mulheres pretas também têm filhos? Se as brancas não querem nem saber que existem mulheres pretas (a não ser quando elas precisam de uma escravinha para limpar a merda, cozinhar, lavar e passar os panos de bunda delas, é claro), por que raios você acha que eu deveria lembrar das mulheres brancas? 

O engraçado é que pessoas como você só reclamam da ausência de mulheres brancas quando há um anúncio só com mulheres pretas (que são raríssimos por sinal), mas eu nunca vi uma pessoa sentir a falta de mulheres pretas num anúncio só com mulheres brancas (isso me lembrou de um dos episódios da temporada 2012 do programa Esquenta, apresentado por Regina Casé, em que ela disse que estava sendo chamada de racista porque no programa dela só tinha preto, e que por isso ela resolveu levar algumas pessoas brancas ao programa para convencer o público do contrário, isto é, que ela não é racista). Eu sou filho de uma mulher preta, neto de uma mulher preta (de quem eu tenho e terei saudades eternas), conheço e trabalho com muitas mulheres pretas que são mães, e portanto eu estou prestando uma homenagem A ESSAS mulheres. Mulheres que são tratadas como se não existissem; que não tem direito a um pré-natal digno e não recebem sequer anestesia quando chega a hora de dar a luz seus filhos; que são sistematicamente maltratadas, agredidas, abandonadas e assassinadas pelos namorados e maridos (que são, na maioria dos casos, homens tão pretos quanto elas) e que por isso têm de se virar para trabalhar e sustentar as suas crianças; que não tem creche para colocar os filhos enquanto trabalham, e que por isso são obrigadas a deixar os filhos menores aos cuidados do irmão mais velho ou com a vizinha (quando elas acham uma vizinha que se disponha a fazer isso, porque senão elas terão de abandonar seus empregos e fazer um bico aqui e outro acolá pra garantir o pão daquele dia no sustento de sua cria); que não têm uma escola decente para os seus filhos estudarem e buscarem um futuro melhor (porque filho de preto tem mais é que trabalhar para ajudar no sustento da casa; esse negócio de estudar é invenção de moda; onde já se viu, preto querer estudar?; se o criouléu todo resolver virar doutor, quem vai lavar minha privada?); que, no dia de hoje, tiveram de aguentar todos os tipos possíveis e imagináveis de humilhações para visitar os seus filhos nos presídios e que também, neste exato momento, estão chorando e reconhecendo os seus filhos mortos nas geladeiras do Instituto Médico-Legal (o fato de a maioria da população carcerária e de cadáveres nos necrotérios ser de pessoas negras deve ser mera coincidência ou simples fatalidade, pois preto deve ser tudo bandido mesmo – e bandido bom é bandido morto). É para essas mulheres que eu estou falando. São essas as mulheres que eu estou homenageando.



Que discursinho mais democracia racial da p... Você está parecendo aqueles caras do Democratas que dizem que as cotas para negros nas universidades (cuja constitucionalidade foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal em decisão unânime nos dias 25 e 26 de abril últimos) não contemplam os brancos pobres. Afinal de contas, dizem esses canalhas, o nosso problema não é racial, e sim socioeconômico (como se o racismo não fosse um problema socioeconômico), em que uns tem muito e outros não têm nada, e esse lance de cotas deve agregar critérios sociais e não raciais. Não é mesmo?

Duas coisas: 1) ao contrário do que a midiona tenta fazer a população brasileira acreditar, os brancos pobres também estão sendo beneficiados pelas cotas; 2) os brancos pobres não ocupam o mesmo lugar que os pretos pobres, até porque os brancos pobres não se reconhecem como iguais aos pretos pobres. Numa sociedade racista como a nossa, em que o racismo é estrutural e regulador das nossas relações sociais, ser branco significa ter capital simbólico. Ou você nunca ouviu um branco pobre, favelado e subempregado olhar para a cara de um preto que têm as mesmas condições de vida que ele e dizer: “pelo menos eu não sou preto igual a você”? Mas vamos deixar o sistema de cotas de lado por enquanto, pois o assunto do texto é outro. 

Se não quiser curtir, não curta. Eu nunca tive a pretensão de agradar a todos mesmo. Faça o que você achar melhor. Pois eu não tenho a menor vontade de querer mudar a cabeça de ninguém através das coisas que eu posto nas redes sociais (até porque isso é impossível; eu só posso propor, a mudança de mentalidade é decisão de cada um e eu não posso determinar isso), ou até mesmo, fazer alguém enxergar melhor. Até porque a minha formação é de professor de história e não de médico oftalmologista.

Se não quer ver o que está para além do seu umbigo e da sua redoma existencial, pode me excluir. É muito mais sensato, ou muito menos cansativo pra você e pra mim.

Combinado?