quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Quer que a educação melhore? Faça alguma coisa!


Vi uma nota na internet que me deixou bastante indignado: “Mais de 14 mil alunos de Salvador só terão aulas na rede estadual em abril”. A curta matéria conta o caso de vários meninos e várias meninas que, por conta dos quatro meses de greve da rede pública estadual baiana, só voltarão às aulas no dia 1º de abril de 2013 e, por conta disso, terão de ficar mais de noventa dias parados em casa sem fazer nada.

Tenho duas coisas a dizer sobre isso: ninguém é inocente nessa parada. Todas as pessoas, guardadas as devidas proporções, têm sua parcela de culpa e deverão assumir as suas responsabilidades se quiserem mesmo resolver o caso. Dou ênfase a isso porque não adianta jogar a culpa no governo, pois é chover no molhado dizer que as autoridades não estão nem aí para a educação pública. O governador, o secretário de Educação e os deputados baianos estão pouco se importando se os e as estudantes da rede pública ficarão mais de três meses sem ter o que fazer por uma razão bem simples: os filhos e netos deles não estudam lá. Aconteça o que acontecer, todos eles dormirão com a certeza de que os seus filhos estão sendo muito bem treinados para sucedê-los no poder e continuar dominando os subalternizados. É até bom que filho de pobre não estude mesmo, pois, se essas faveladinhas virarem doutoras, quem vai lavar minhas cuecas?

Certa vez, li um texto que dizia que o senador Cristóvam Buarque elaborou um projeto de lei para obrigar os políticos a matricular os filhos deles em escolas públicas. Ao conversar sobre isso com um vizinho, ele disse que o senador Buarque era um babaca, otário e desocupado por pensar uma coisa ridícula como essa. “Tá vendo que um projeto desse nunca vai ser aprovado?”, disse o meu vizinho. E eu rebati: “o senador Buarque não é babaca coisa nenhuma. Foi você que não sacou o detalhe da jogada. Ele sabia muito bem o que estava fazendo. O objetivo dele era ver se as pessoas perceberiam por que os políticos não se interessam em melhorar os níveis das escolas públicas brasileiras, e se haveria alguma reação contra esse descaso”. Porém, quem ficou sabendo disso? E para as pessoas que souberam, quem deu importância ao caso?

A situação da educação no Brasil está do jeito que está porque as pessoas que mais deveriam pressionar por uma educação pública de qualidade são as que menos pressionam. Ninguém se importa com educação! Afinal, qual foi o pai ou a mãe de estudante que foi à porta da governadoria do estado exigir que o governador Jaques Wagner negociasse com a categoria? Nenhum! Pelo contrário, todas essas pessoas ficaram paradas em casa, xingando as professoras de preguiçosas, vagabundas e desocupadas que armaram todo esse fuzuê para não trabalhar.

Como se isso não bastasse, muitos pais e mães, ao invés de defender a escola pública, apoiar o professorado e reconhecer como justas e fundamentais as reivindicações da categoria, foram às portas das escolas particulares pedir bolsas para os seus filhos. Lembro de uma matéria publicada em um jornal da cidade sobre uma mulher cuja filha estudava no Colégio Estadual Thales de Azevedo. Em vez de protestar contra o descaso do governador e se juntar ao professorado para pressionar o governo, ela escreveu uma carta endereçada à diretoria de uma escola particular parede-meia com a já citada escola estadual para pedir uma bolsa para a filha dela. O jornal ainda publicou a carta em que a autora disse que estava fazendo aquilo porque não aguentava mais ver a filha dela em casa sem estudar. Afinal, a menina tinha desejo de estudar Medicina, o ENEM estava se aproximando e ela não estava sendo preparada para isso. E finalizou a carta dizendo que essa atitude pode parecer um pouco egoísta, mas "cabe a cada um encontrar as suas formas de lutar".

Não sei se essa senhora foi exitosa em sua investida, mas, na hipótese de ela ter logrado êxito, você acha que ela se preocuparia com a situação das outras adolescentes que ficaram sem aula? Você acha que ela se preocuparia com quem não conseguiu bolsa em alguma escola particular? Se ela não se mobilizou antes, você acha que ela se mobilizaria depois? “A minha filha está estudando para fazer Medicina, portanto não me interessam os outros. Eu sou mãe da minha filha, e não das filhas das outras pessoas. Quem está sem aula que se dane! Eu dei o meu jeito, portanto elas que deem o jeito delas também”. Pimenta no rabo das filhas dos outros é refresco.

A outra coisa que eu tenho a dizer é a seguinte: é assim que se inicia o extermínio da juventude negra: fazendo de tudo para os e as estudantes ficarem fora da escola, perderem o ritmo de estudo e saírem às ruas em busca do que fazer para vencer o tédio e a ociosidade. Alguns inevitavelmente viram escravizados do subemprego que lhes paga uma mixaria que é toda consumida com a compra de celulares vagabundos e tênis de marca. Outros se tornam presas fáceis da bandidagem e, quando isso acontece, o mesmo estado que negou a essas pessoas todas as chances de sair daquele cenário de miséria e carência de perspectivas manda a polícia fazer o serviço sujo de puxar o gatilho da .40 e estourar os miolos delas, sob o argumento de estar combatendo a criminalidade.

E depois ainda querem que eu apoie essa excrescência jurídica chamada redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Sou terminantemente contra! Invista em educação e incentive o protagonismo juvenil que o contingente de soldados do tráfico diminuirá. Há vários pretos favelados por aí que só precisam de uma oportunidade para se tornar engenheiros da Aeronáutica, médicos neurocirurgiões, desembargadoras, ministras do STF, arquitetos, biólogas, oficiais das Forças Armadas, psicólogas, dentre outras coisas. Mas as poucas esperanças de vida são aniquiladas quando esses meninos e essas meninas vão à escola e não têm aula, não encontram a biblioteca aberta, encontram professores desinteressados que reclamam das péssimas condições de trabalho e descontam as suas frustrações em cima de quem é mais vítima do descaso das autoridades públicas do que eles. Afinal de contas, é bem mais fácil descontar a raiva em cima de quem é mais fraco do que peitar os mais fortes e poderosos em busca de uma solução para o problema.

Isso foi só um desabafo. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Os grandes ícones da luta antirracista são importantes - e você também.

Mais um texto que saiu, como bem disseram Caju e Castanha, igual a caldo de cana: feito na hora. Começou como um simples comentário lá no Facebook, mas, à medida que fui escrevendo, saiu tanta coisa que eu resolvi elaborá-lo um pouco mais e publicá-lo aqui no blog.


Recebi na minha página inicial uma imagem alusiva ao Mês da Consciência Negra com a mensagem: “Nesse mês da Consciência Negra, mostre que você é a favor da igualdade. Troque sua foto por um ícone da luta contra o racismo no mundo!”.



 Jo Serra, parceira de caminhada que vive em Brasília, deu uma resposta que eu achei boa, e foi a partir daí que veio a ideia de escrever esse texto. Disse ela: Eu vou deixar a minha foto, para mostrar que todo negro, ou pardo, faz parte da luta. Mesmo que não queira...”. Discordo em parte. Eu não acho que todo negro ou pardo faz parte da luta, mesmo que não queira. Afinal de contas, como disse Ana Maria Gonçalves, militância não é coisa para qualquer um. Só entra nessa quem quer, pode, tem tempo, paciência e sobretudo frieza para aguentar as piores misérias e escrotices da vida, recuperar o vigor e seguir em frente. Quem não está a fim nem entra. E quem não tem disposição para suportar o porradão e trabalhar sem um centavo pede para sair no dia seguinte (isso se ela não for embora imediatamente). Além do mais, há muitos negros e negras por aí que não estão engrossando as nossas fileiras, não se interessam pelo combate ao racismo (e eu não falo só das pessoas que nunca leram Racismo & Sociedade, de Carlos Moore, e Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon) e que, com a maior desfaçatez do mundo, dão declarações públicas contrárias à nossa causa (após terem bebido na nossa fonte) e passam para o outro lado a fim de vender o serviço a pessoas e grupos que sempre se dedicaram a nos ferrar (só não vou citar nomes). Afinal de contas, o caráter de uma pessoa não tem relação alguma com a cor da pele.

 
 Marcus Garvey, em uma de suas mais conhecidas declarações, disse que não queria levar todos os negros de volta para a África porque havia muitos que não eram boas pessoas aqui, e seguramente não seriam boas pessoas lá. E eu penso da mesma forma: eu não quero toda e qualquer pessoa dentro das organizações de luta antirracista, pois há muita gente que não é boa pessoa do lado de fora, e com certeza não será boa pessoa do lado de dentro. Nem sempre quem está do nosso lado é nosso amigo.


Mas concordo integralmente com a primeira parte do comentário, quando ela disse que vai deixar a foto dela mesma com vistas a mostrar que ela também é importante nessa luta. Apoiadíssimo. Eu vou fazer a mesma coisa. Afinal de contas, os grandes líderes não existiriam se não fossem acompanhados e apoiados pelas pessoas anônimas. Steve Biko, Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras, dentre outros, foram assassinados por lutar contra o racismo, mas foram só eles? Eles fizeram tudo sozinhos? E todas as outras pessoas que foram assassinadas antes e depois da morte desses caras, não contam? Essas pessoas não foram importantes para a luta antirracista? 


Todos e todas nós somos importantes nessa guerra, ainda que os nossos nomes não se tornem conhecidos pelo grande público ou fiquem imortalizados nos livros de História. Para mim, isso pouco importa. O que interessa mesmo é ter a consciência de que eu não fiquei impassível diante dos fatos e que, na medida das minhas possibilidades e limitações, fiz algo para mudar esse cenário de horror em que vivemos. E para quem acha isso pouco, eu direi, inspirado em Idelber Avelar, que eu só aceitarei críticas “de quem estiver de baioneta na mão, atrás de uma barricada, lançando um coquetel molotov ou derrubando as portas de um Palácio de Inverno”. Se você não está fazendo nada e se acha no direito de condenar quem está tentando fazer alguma coisa, a única coisa que você terá é o meu desprezo.


Se alguém, futuramente, quando eu não puder pisar mais na avenida e quando as minhas pernas não puderem aguentar, quiser me entrevistar e escrever um livro sobre a minha vida e a minha atuação na militância, será ótimo. A depender da pessoa, dos interesses que ela estiver defendendo e do que ela pretender fazer com as minhas palavras, eu falarei com o maior prazer (ou não). Mas se isso não acontecer, tudo bem do mesmo jeito. Afinal, eu nunca tive (como não tenho) nenhuma pretensão de virar pop star - até porque eu não faço o que eu faço hoje porque acho bonito.


À guisa de conclusão: eu não vou colocar foto de ícone nenhum. A foto que ficará lá no meu perfil será a minha mesmo. Eu também sou importante nessa luta. Eu também faço luta contra o racismo. Isso não significa que eu estou desmerecendo a atuação das grandes figuras, e sim que eu estou valorizando o trabalho de todas as pessoas que, assim como eu, estão anonimamente fazendo o que podem para combater esse câncer instalado na nossa sociedade que é o racismo.


Todas as pessoas que passaram o ano inteiro estudando no Instituto Cultural Steve Biko, no COE-Quilombo, no Quilombo Ilha, no Bahia Street, no Quilombo do Orobu e demais cursinhos pré-vestibulares populares espalhados pelo Brasil são importantes nessa guerra. Vocês, que estão aí contendo a ansiedade para fazer a prova do ENEM, estão lutando contra o racismo ao dizer não a toda uma estrutura social montada para vos colocar nos piores lugares, nos piores empregos e receber os piores salários. Ao resolver encarar a batalha pela entrada na universidade, vocês estão brigando para ter acesso ao que é vosso por direito e que durante muito tempo foi negado. Estamos apenas começando a meter o pé na porta e entrar, pois nada nos será dado de graça.


E podem me chamar de arrogante e presunçoso. Fiquem à vontade.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Os ricos têm medo das cotas?


Recebi uma postagem hoje no Facebook: a imagem de uma parede pichada com a mensagem: “Os ricos têm medo das cotas?” Comecei a escrever uma resposta lá mesmo no Face, mas resolvi desenvolvê-la um pouco mais e publicá-la aqui no meu blog.



Com toda certeza. Afinal de contas, conhecimento é poder. E, por conta disso, ele sempre foi enclausurado nas universidades para usufruto de uma minoria seletíssima.

O racismo não tem nada a ver com ignorância. Esse papo de que as pessoas que estudaram menos tendem a ser mais racistas do que as pessoas que estudaram muito não se sustenta na prática. Há médicos, advogados, psicanalistas, professoras, dentre outras, que estudaram muito, têm mestrado, doutorado, Ph.D. na Universidade de Paris e o caralho e que continuam acreditando que o negro é inferior ao branco. Seria desnecessário – e enfadonho – citar exemplos.

Além do mais, devemos lembrar que as teorias racistas, que afirmavam a pretensa inferioridade natural do negro, bem como as ideias que diziam que a mulher era intrinsecamente mais débil e frágil do que o homem, o que a tornava incapaz de votar e trabalhar fora, por exemplo, foram criadas na universidade. Médicos, biólogos, filósofos e demais pessoas pertencentes às elites intelectuais do seu tempo criaram as suas ideias de dominação e usaram a legitimidade acadêmica para dar mais veracidade às suas teorias odiosas. O racismo é uma invenção de elites intelectuais, não de pessoas ignorantes e iletradas. Como disse Carlos Moore em Racismo e Sociedade, o racismo é um sistema de poder, não um sentimento pessoal isolado.

E as cotas, apesar de ser uma medida incompleta e insuficiente para corrigir as abissais desigualdades sociais brasileiras, estão provocando tanto furor nos círculos mais conservadores da nossa sociedade justamente por isso: por possibilitar aos grupos subalternizados, excluídos e invisibilizados o acesso a esses conhecimentos, que nos permite combatê-los precisamente no lugar em que são criados. De posse dessas ferramentas, nós passaremos a conhecer o funcionamento das engrenagens sociais que regem as nossas vidas e, ato contínuo, começaremos a pensar em transformá-las. E é isso que as elites brasileiras não querem: que a ordem social mude; que os lugares reservados historicamente aos seus filhos e netos não sejam ocupados pelo filho da empregada ou pela neta da lavadeira. Como bem disse Malcolm X, sem racismo não há capitalismo. E é por conta disso que os ricos têm, sim, medo das cotas. 


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Dia do Professor

Esse texto foi escrito pela minha tia Antônia, e colocado no meu perfil do Facebook. Resolvi postá-lo aqui para que mais pessoas possam ver a melhor das homenagens que eu recebi hoje. 


O DIA DO PROFESSOR
Se não é fácil para um pai ou uma mãe ser professor do seu próprio filho em sala de aula repleta de outros alunos, não deve ser fácil para um filho ser professor do seu pai ou da sua mãe nas mesmas circunstâncias.
Entretanto conhecendo o seu caráter sei muito bem, que no momento em que você dava às suas aulas não via entre os seus alunos a fugura da sua mãe, como mãe e sim a de 
uma aluna com as mesmas dúvidas e expectativas inerentes a todos os outros alunos.
Portanto é com muita emoção que eu lhe agradeço por você juntamente com os seus colegas ter contribuído para a aprovação da sua mãe, aos cinquenta e sete anos e de todos os outros que foram aprovados no processo seletivo 2012 da Universidade Federal da Bahia e em outras Universidades ou Faculdades; principalmente aqueles menos favorecidos socialmente, que são obrigados constantemente pelos vícios de uma sociedade perversa e rotulista a recolher a sua voz e os seus direitos a insignificância imposta pelo sistema educacional vigente em nosso país.
Quero lhe dizer também que hoje aos cinquenta e oito anos e tendo sido aprovada no curso de letras da Faculdade São Luís de França, em Aracaju-Se, que toda vez que estou lendo ou escrevendo algum texto, mesmo com a distância que nos separa eu sinto um orgulho tão grande em saber que sou sua tia, e é este orgulho que sempre me deu forças para continuar e chegar aonde cheguei.
Mais uma vez agradeço ao meu sobrinho e professor Rogério Luis, por tudo que você já fez e por tudo que eu sei que você e seus colegas ainda vão fazer pela educação do nosso país.
Feliz dia do professor,
Da sua tia Antonia.

sábado, 7 de julho de 2012

Em dia de azar, o urubu de baixo caga no de cima


Estava voltando para casa hoje, vindo de Mar Grande, cansado depois de dois dias de trabalho (dou aula lá sexta à noite, e sábado pela manhã em Tairu, a 32km de distância de Mar Grande). Peguei a lancha no terminal. Logo ao entrar, para minha tristeza, vi um sujeito mal-acabado, mal-encarado, segurando uma prancha enorme, um par de óculos ridículo na cara e com o som do celular ligado no último volume. Não sentei na proa da lancha para apreciar a paisagem, como havia pensado em fazer, por conta disso – ele estava lá, e eu não quis ficar perto dele. Tive de ficar no meio da embarcação, com um monte de gente na minha frente e sem conseguir ver o mar. Um saco! Eu, cansado, com fome, com sono, a fim de fazer a travessia Mar Grande-Salvador em silêncio e receber aquele ventinho na cara, viajei tendo de aguentar o barulho feito pelo celular daquele sujeitinho. E eu não pude falar nada, pois, se falasse, certamente ele e o outro mal-acabado que estava com ele me atirariam na Baía de Todos os Santos. Sabe como é, ele quer ouvir o som dele no último volume, num espaço público, e os outros que aguentem -  ou então tapem os ouvidos.

(Certa vez, peguei um ônibus em direção ao subúrbio, meu local de trabalho às quartas. Achei um lugar para sentar – coisa rara, visto que os ônibus que transitam para aquela região parecem mais paus de arara do que transporte público coletivo [moradores do subúrbio de Salvador, não me apedrejem; vocês também reclamam dos ônibus socados de gente que são obrigados a pegar todo dia]. Após me acomodar, um safardana, sentado a duas fileiras atrás de mim, ligou o celular dele no último volume. Último volume mesmo; nunca vi um celular com um som tão potente como aquele. Parecia mais um trio elétrico. Após me assustar com a pancada do som no meu ouvido e olhar para trás a fim de ver quem havia feito aquilo, o sujeito não gostou e, ato contínuo, gritou: “QUE FOI, IRMÃO?!! TÁ INCOMODADO?? NÃO GOSTOU NÃO?! ENTÃO, DESÇA E PEGUE TÁXI”. Resolvi ficar calado, pois ele poderia partir para cima de mim e me matar de porrada – ou meter uma bala no meio da minha testa, caso estivesse armado. Afinal de contas, eu sou grande, mas não sei bater em ninguém. E não faço questão de aprender, pois eu não gosto de violência.)

Mas retomando minha peripécia Mar Grande-Salvador, como se não bastasse, a viagem foi péssima. O mar estava muito revolto, e por isso a embarcação balançou bastante – tanto na ida como na volta. Ainda bem que eu não enchi a barriga antes de viajar, pois, se eu tivesse feito isso, haveria uma possibilidade muito grande de, em virtude do sacolejo constante e interminável, eu vomitar tudo em cima de quem estava sentado na minha frente. E se isso acontecesse, eu provavelmente não teria escrito esse texto.

Finalmente, desembarquei. Como eu estou evitando ao máximo entrar na Estação Pirajá (uma estação de transbordo de Salvador), decidi andar até o ponto do Instituto do Cacau, no bairro do Comércio, para pegar um ônibus que me trouxesse para Cajazeiras sem a necessidade de ter de descer no meio do caminho para pegar outro. Depois de cerca de dez minutos parado no ponto, apareceu um micro-ônibus que fazia a linha São Gonçalo-São Joaquim dirigido por um ex-vizinho e coligado meu (que eu não via há um bom tempo). Ao me reconhecer, ele parou perto de mim e perguntou se eu aceitava uma carona até o Largo do Tanque. Como eu nunca fui ao São Gonçalo (até porque eu nunca tive o que fazer lá), perguntei se a linha era via Liberdade ou Av. San Martin. Ao ouvi-lo dizer que a linha era via San Martin, resolvi aceitar e descer no Retiro, pois, lá, é mais fácil pegar um ônibus para Cajacity.

Maldita hora em que eu aceitei essa carona! Já na entrada da San Martin, o ônibus parou. O congestionamento estava enorme (fato que já se tornou rotina no trânsito de Salvador, pelo grande número de veículos que há na cidade e pela péssima infraestrutura de tráfego. Salvador é uma cidade sem zona de escoamento de veículos. Se houver um acidente, se houver operação tapa-buracos ou um caminhão de entrega parar na lateral da pista, ninguém passa). Diante da lentidão do trânsito, eu cheguei a ter a impressão de que eu não sairia daquele lugar hoje. Saí – depois de quase meia-hora parado, diga-se de passagem. O “bolo” estava formado na entrada da Santa Mônica, bem ali na frente da Igreja Universal do Reino de Deus. Após ter passado dali, foi tranquilo.

Desci no Retiro. Ainda quando eu estava atravessando as pistas para chegar ao ponto, avistei um Fazenda Grande 4/3/2 saindo da San Martin parado no semáforo. Tive até de dar uma corridinha leve para não perder o buzu. Consegui chegar a tempo. Ao colocar o pé na porta de entrada, constatei que havia outro babaca dentro do ônibus com o som do celular no último volume tocando A Bronkka (argh!!). Respirei fundo. Procurei um lugar para sentar, mas o foda é que o espaço interno entre uma cadeira e outra é pequeno demais para mim, e por isso o meu joelho direito teve de ficar espremido no encosto do assento da frente. Para completar, um cara bastante parrudo sentou ao meu lado e, como o espaço também estava pequeno para ele, a perna esquerda dele ficou colada à minha perna direita. Depois de alguns minutos de incômodo recíproco, ele se deu conta de que não havia a menor possibilidade de viajarmos daquele jeito, percebeu que a direita dele estava livre e virou as pernas um pouco para o lado. Que alívio! Em Águas Claras, ele se levantou, desceu da marinete e tomou o rumo dele. Ufaaaaaaaaa!!!

Lá estava eu, tranquilo e calmo, lépido e fagueiro, acreditando piamente que não enfrentaria mais nenhum empecilho na minha epopeia de volta para casa. Ledo engano. No meio da ladeira de Cajazeira 8, outro congestionamento de trânsito. Normal, é assim mesmo; isso acontece todo dia, aos sábados então?; o movimento da feira na Rótula da 10 para o trânsito todo; de 11 da manhã até as 3 da tarde, não há como não pegar engarrafamento nesse trecho; relaxe. RELAXE O CARALHO!! Tô de saco cheio já de tanto engarrafamento nessa porra! Será possível que ninguém mais consegue transitar pela cidade sem perder tempo no trânsito. Há dez anos, os megacongestionamentos limitavam-se à região do Iguatemi. Hoje, é na cidade toda! Toda vez é isso? Enquanto não houver transporte coletivo de qualidade, o pessoal continuar comprando carro adoidado e as vias de acesso permanecerem estreitinhas, essa merda continuará do jeito que está. É daí pra pior. Eu trabalho às 19h na segunda e na quarta e às 20h na terça. Entretanto, se eu não sair de casa antes das 16h, há um grande risco de eu não chegar e perder o meu dia. Eu tenho de achar normal isso? Eu tenho de aceitar que é assim mesmo? Assim mesmo o cacete!

Como se não bastasse, após sair do trecho mais crítico do engarrafamento, o motorista do ônibus que eu peguei no Retiro inventou que estava com vontade de ir ao banheiro, botou bandeira de Garagem, encostou o buzu no muro do Hospital Jaar Andrade e pediu ao cobrador para colocar os passageiros em outro ônibus que vinha logo atrás (Fazenda Grande 2/3 R2). Ao entrar, imaginem só o que aconteceu. Dei de cara com o mesmo surfista mal-acabado, mal-encarado, usando os mesmos óculos escuros ridículos, segurando a prancha e fazendo zoada dentro do ônibus com o celular no último volume. Puta merda!!!!

Deu uma vontade tremenda de descer e vir para casa andando. Contudo, eu estava muito cansado e com uma fome de leão, e por isso resolvi aguentar mais uma vez até o ponto de ônibus perto da minha casa. Se a minha avó Maria da Conceição estivesse aqui e ouvisse esse relato, ela olharia para a minha cara e diria, do alto da sua sabedoria de vida, o seguinte: “meu filho, fique tranquilo. A vida é assim mesmo. Em dia de azar, o urubu de baixo caga no de cima”.

Mas eu tive uma notícia boa. Tinha consulta marcada com o fonoaudiólogo hoje às 4 da tarde. Isso posto, eu teria de ir pra casa, tomar um banho, trocar de roupa, comer e sair de novo. Mas quando o ônibus estava passando pelo Jaguaripe (Conjunto Jaguaripe I, em Cajazeiras. Não confundam com a praia de Jaguaribe, que fica localizada ao lado da praia de Piatã, na orla de Salvador), ele ligou para dizer que havia passado mal ontem e acordou hoje cheio de dores no corpo, e por isso não tinha a menor condição de me atender. Não reclamei. Fui para casa, almocei com a digníssima e fumei um charuto para relaxar. Afinal de contas, eu mereço. Depois desse épico, então...

domingo, 3 de junho de 2012

O valor da passagem de ônibus aumentou. E nós vamos engolir mais essa calados?


Está definido: a partir de hoje, o valor da passagem de ônibus em Salvador passará de R$ 2,50 para R$ 2,80. A imprensa passou duas semanas fazendo terrorismo psicológico com a população da cidade sobre um suposto aumento para R$ 3,15. Um ou dois dias atrás, alguns jornais anunciaram que o aumento seria bem abaixo desse valor e, ontem, foi anunciado o valor definitivo. Um absurdo, pois, com esse aumento, o valor da passagem se tornou um dos mais altos de toda a região Nordeste. Além do mais, nós sabemos muito bem o que as empresas de ônibus oferecem em troca desse aumento exorbitante: veículos precários, em péssimo estado, sem nenhum conforto, sujos, insuficientes para atender a demanda (são apenas 2.700 ônibus rodando na cidade), horários infrequentes... Isso sem contar os motoristas e cobradores mal-humorados e os passageiros mal-educados que entram no ônibus gritando, falando alto e ouvindo som no celular ou nas caixas de som no último volume, que só pioram o que já está ruim. Mas eu vou deixar isso de lado, pois eu vim aqui para falar de outra coisa.

Muita gente está resignada com o aumento, pois o valor ficou em R$ 2,80 ao invés dos R$ 3,15 anteriormente anunciado. Ora, meu povo, não sejam idiotas! É claro que o SETPS (Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros de Salvador, entidade criada para defender os interesses dos donos das empresas de ônibus) não pediria e a Prefeitura de Salvador não concederia um acréscimo escorchante desse. Vocês acham que as pessoas que controlam as referidas instituições seriam bestas a esse ponto? Foi declarado um aumento exagerado, para causar pânico nas pessoas, e, no final, foi concedido um aumento um pouco menor para que as pessoas concluíssem que a passagem não foi para R$ 3,15 e ficassem caladas. É aquela velha consolação do “pelo menos não saiu tão caro” - como se esse valor não fosse suficientemente caro em comparação à qualidade de serviço oferecido. 

Se vocês quisessem vender um produto qualquer, vocês pediriam o preço exato que o produto vale? Claro que não! Ninguém seria burro a esse ponto. Qualquer pessoa minimamente inteligente colocaria um preço maior, para que as possíveis compradoras reclamassem, iniciassem uma negociação, e você pudesse baixar gradativamente o preço até chegar ao valor que você acha merecido pelo produto. O SETPS e a Prefeitura de Salvador fizeram a mesmíssima coisa.

Para as pessoas conformadas, que estão dizendo que foi bom, pois, afinal de contas, foram só trinta centavos de aumento, eu faço uma pergunta: vocês já contabilizaram quanto esse aumentozinho de trinta centavos pesará no orçamento mensal? Não?! Então, eu vou ajudar: “supunhetamos” que você pegue quatro ônibus por dia, dois para ir ao trabalho e dois para voltar. Esse “aumentozinho” de trinta centavos resultará em mais R$ 1,20 por dia. Por semana (na hipótese de que você trabalhe somente de segunda a sexta), você terá uma despesa adicional de R$ 6,00. Por mês, de R$ 24,00. Agora, pense que você ganha pouco, precisa comer, pagar as contas, e ainda colocar créditos no Salvador Card dos seus dois filhos que estudam longe de casa e têm de pegar dois ônibus todo santo dia para ir à escola e voltar pra casa. E aí? Já fez as contas? Em caso afirmativo, você ainda continua pensando que foi só um aumentozinho de nada e que o pessoal está reclamando por besteira? Fazendo tempestade em um copo d’água?

Vários protestos já vêm sendo organizados há um bom tempo contra isso. Está circulando pelas redes sociais a chamada para uma manifestação amanhã para protestar contra esse aumento abusivo das passagens de ônibus. Tudo bem. A causa é nobre, a iniciativa é louvável, os motivos são justos, mas nós já sabemos muito bem como isso acabará: o governador mandará a PM baixar o cacete em todo mundo (para manter a lei e a ordem, é claro), e a imprensa tratará de jogar a população contra os manifestantes ao falar dos enormes congestionamentos causados pelas passeatas. E tudo ficará como já está - na merda.

Desde que começou a correr à boca pequena pela cidade a notícia do aumento das passagens de ônibus, eu venho pensando em uma ideia que eu acho mais interessante e resolvi escrever esse texto para coletivizá-la convosco. Que tal se nós fizéssemos um boicote ao sistema de transporte coletivo de Salvador? Que ninguém pegasse ônibus amanhã? Já sei: alguém disse (ou pelo menos pensou) que eu sou maluco, que eu devo ser uma pessoa que não tem o que fazer, que parece que eu não sei que as pessoas precisam trabalhar para sobreviver, que certamente eu não tenho filhos para criar (e eu não tenho mesmo) e por isso posso me dar ao luxo de ficar em casa coçando e cheirando sem fazer nada. Pois saibam que eu também trabalho, eu também pego ônibus, eu também tenho de sobreviver e pagar as minhas contas, e eu não sou maluco coisa nenhuma (será mesmo que não?). O boicote é uma estratégia bem inteligente, uma maneira bem contundente de reagir contra uma empresa que cobra preços abusivos sobre um determinado produto ou serviço ou desrespeita a sua clientela – atacando-a no bolso. E vou dar um exemplo para vocês verem que eu não estou falando abobrinha.

Eu já vinha pensando em escrever sobre isso há um bom tempinho, mas como o psicólogo e coligado Valter DaMata já cantou a pedra no Facebook, eu vou dar os créditos a ele para que posteriormente ninguém me acuse de desonestidade intelectual. Nos Estados Unidos, do final do século XIX a meados do século XX, havia um conjunto de leis racistas conhecidas como Jim Crow que determinava, dentre outras coisas, a separação legal de brancos e negros nas escolas e no transporte público. Aí está a grande diferença do racismo nos Estados Unidos e na África do Sul durante o regime do apartheid em relação ao racismo no Brasil, pois, nesses dois países, o racismo era declarado. Os racistas de lá falavam na cara; mostravam logo quem eles eram e o que pensavam – o racismo estava escrito nas leis, e por isso as pessoas podiam constatar a realidade e organizar o contra-ataque. Lá, a população negra sabia quem era o seu inimigo. Aqui, não. O racismo é velado e negado a todo instante, apesar das abissais disparidades entre brancos e negros e dos constantes casos de violência racial que ocorrem por aqui. Não é por acaso que o antropólogo Kabengele Munanga afirmou que o nosso racismo é um crime perfeito.

Na prática, as leis Jim Crow significavam que brancos e negros eram obrigados a viajar em ônibus separados em alguns estados. Já em outros, brancos e negros até podiam viajar dentro do mesmo ônibus, mas com uma condição: as pessoas negras tinham de viajar no fundo do ônibus, e se por acaso uma pessoa negra se sentasse no local reservado aos brancos, ela seria obrigada a levantar e dar o lugar à pessoa branca. Se a negra não fizesse isso, ela seria expulsa do ônibus a tapas e presa sob acusação de ter violado a lei.

Em 1955, a organização liderada por Martin Luther King Jr., à época já um conhecido líder da luta pelos direitos civis nos EUA, em conjunto com outras organizações de luta pelos direitos civis, resolveram reagir contra esse estado de coisas. Membros da organização foram à cidade de Montgomery, no estado do Alabama, para mobilizar a população negra da cidade a lutar contra a segregação racial nos transportes públicos. Depois de muito planejamento, chegou a hora de entrar em ação: uma militante da organização de nome Rosa Parks, uma mulher de 42 anos que trabalhava como costureira, foi designada para pegar um ônibus na cidade, sentar-se no lugar reservado aos brancos e se negar a levantar. Foi o que ela fez. Logo em seguida, entrou no ônibus uma pessoa branca que nem se deu ao trabalho de pedir para Rosa Parks levantar (afinal, ela já deveria saber o que fazer e qual era o seu lugar). Após alguns poucos segundos em pé e ver que ela permanecia impassível, a pessoa branca se juntou a outras iguais a ela, arrancou-a do assento à força e a expulsou do ônibus a tapas. Como se não bastasse, ela ainda foi presa sob a acusação de ter violado a tal lei que a obrigava a dar o lugar à pessoa branca.

Rosa Parks tendo as suas impressões digitas colhidas após ser presa em 01/12/1955.

Esse foi o estopim para a decretação de um boicote ao sistema de transporte coletivo da cidade. A população negra de Montgomery, que na época era de cerca de cinquenta mil pessoas, foi convocada por King a não mais pegar ônibus enquanto essa lei racista não fosse derrubada. Parecia impossível, mas foi exatamente isso que aconteceu: a negrada da cidade passou estonteantes e inacreditáveis 386 dias sem pegar ônibus. As pessoas iam à escola e ao trabalho a pé. Quem tinha carro dava carona a quem não tinha. Quem não tinha carro organizou-se com outras pessoas que também não tinham carro, juntaram o pouco dinheiro que tinham e fretaram conduções – que eram duramente perseguidas pela polícia, diga-se de passagem. Pessoas idosas, para lá dos 70 anos e com dificuldades de locomoção por conta do peso da idade, deslocavam-se a pé para cuidar dos seus afazeres e, quando questionadas sobre por que elas não deixavam esse protesto para as mais jovens, respondiam que estavam andando hoje para que os seus netos não precisassem andar amanhã.

O boicote começou no dia 1 de dezembro de 1955 e durou até o dia 21 de dezembro de 1956. Diante dos fatos e arrasados com os prejuízos, o empresariado resolveu pressionar as autoridades do Alabama para que essa lei fosse revogada, pois só assim a população negra voltaria a usar os ônibus da cidade. E foi isso que aconteceu: a lei foi revogada e, depois desse dia em diante, as pessoas negras voltaram a pegar ônibus com a garantia de que podiam sentar-se onde bem entendessem e não seriam agredidas, expulsas e presas.

Já imaginaram se a população de Salvador resolvesse fazer a mesma coisa? Em Montgomery, foram necessários 386 dias; aqui, bastaria apenas uma semana. Nós não precisaríamos fazer passeata, gritar, tomar porrada da polícia, congestionar o trânsito, apedrejar os veículos, furar os pneus destes, queimar pneus velhos no meio das avenidas da cidade, nada disso. Bastaria apenas todos e todas nós nos recusarmos a pegar ônibus enquanto o valor da passagem não voltasse para R$ 2,50 (que já é caro demais, é bom que se diga). A população negra de Montgomery em 1955 era de cinquenta mil pessoas; Salvador tem uma população de dois milhões. Tentem dimensionar o tamanho do preju que as empresas de ônibus daqui teriam se, no dia de amanhã, ninguém pegasse buzu (até rimou). E que a galera permanecesse irredutível enquanto as autoridades não tomassem uma providência. Já dimensionaram?

Eu entendo perfeitamente que há quem tenha os seus compromissos inadiáveis, mas a nossa situação não mudará enquanto nós não fizermos nada contra esse sistema desgraçado em que vivemos. Pois uma coisa é certa: é impossível acabar com um regime de opressão apelando para os bons sentimentos de quem nos oprime, pois quem nos oprime não tem bons sentimentos. O pessoal do SETPS quer que a gente se lasque!!!

Steve Biko já disse que a arma mais potente do opressor é a mente do oprimido. Enquanto nós permanecermos calados e acreditarmos que o mundo é assim mesmo e não há nada que possa ser feito para mudar, as coisas continuarão do mesmo jeito que estão. Libertem-se da escravidão mental, pois ninguém, senão nós mesmos, pode libertar as nossas mentes, como disse Bob Marley.

Nós temos poder para mudar essa situação. Só nos resta tomar consciência disso e agir

sexta-feira, 18 de maio de 2012

"O ciúme é o perfume do amor". Então, eu quero permanecer fedorento.

Acabei de ler na internet a seguinte nota: “Marido ciumento faz corredora vaidosa adotar meião de futebol para ficar menos ‘pelada’”. O texto conta o caso de Rosângela dos Santos, atleta brasileira dos 100m rasos, que, devido aos ciúmes do marido, funcionário da Marinha, “decidiu” calçar um par de meiões típicos dos e das praticantes do futebol para “amenizar a nudez” durante as competições (!). Ele não gostou de ver a mulher dele lá, com tudo de fora, exibindo o corpão sarado para todo mundo ver, reclamou que a roupa usada por ela nas competições é muito curta, e, como forma de “acalmar a fera”, ela resolveu colocar o tal meião. Ela ainda disse, de acordo com a reportagem, que o marido falou que ela está até “mais bonita” com o acessório extra, numa clara tentativa de disfarçar o caráter invasivo e desrespeitoso da “recomendação”.

Eu não sei o que é mais grave: o marido dela ter imposto uma peça de roupa ao vestuário para ela ficar “menos pelada” ou ela ter concordado, aceitado e feito o que o marido/dono dela mandou “em nome do amor”. E para completar, no final da nota, ela ainda diz que o sonho dela é se tornar passista de escola de samba, mas a tia dela não deixa por causa das roupas que uma passista (não) precisa usar na hora de sambar.
Ou seja, Rosângela faz o que o marido dela quer, o que a tia dela quer, mas não faz o que ELA quer. A vida é dela, o corpo é dela, o sonho é dela, mas ela renuncia a tudo isso para não desagradar a família.
Fico me perguntando: quando (e se) ela dará um basta nisso tudo e passará a vestir-se como quiser e fazer o que bem entender com a vida e o corpo dela? Que sociedade é essa que deixa os homens viverem como quiserem, mas a todo instante estão ditando normas e regras sobre o corpo feminino? Por que um homem pode sair às ruas sem camisa, exibindo o tórax bombado, mas uma mulher não pode exibir as pernas em uma competição de atletismo?
Regina Navarro já escreveu muito sobre isso, e eu não pretendo ser caixa de ressonância dos textos dela (ou pelo menos eu me comprometo a tentar não ser). O ciúme é um sentimento altamente destrutivo, mas infelizmente é passado para nós como uma coisa positiva; há até quem diga que “o ciúme é o perfume do amor”, um tempero a mais na relação (como se fossem necessárias demonstrações constantes de posse para uma pessoa se sentir amada). É nada mais do que um conjunto de práticas criadas para controlar o corpo da mulher de um modo menos indolor (se é que posso usar essa expressão). Controlar as roupas, o decote da blusa, o tamanho do vestido, da saia ou da bermuda, o uso de maquiagem, a cor do esmalte das unhas, o cabelo solto ou preso, os horários, nada disso é visto como estratégia de dominação. Nãão!!! É para o bem delas, pô! As mulheres não sabem dirigir as próprias vidas, portanto nada mais natural que nós, homens, donos da razão, a protejamos delas mesmas. Sabe como é, né, mulher solta sem governo só faz merda!
Já vi e ouvi vários comentários de e sobre mulheres que ficaram revoltadas com os seus companheiros/namorados/maridos porque eles não sentem ciúmes delas. Lembro de uma vez em que a minha mãe disse que estava no ponto de ônibus e ouviu uma mulher dizer que o namorado dela era um banana porque não sentia ciúmes dela. “Ele me deixa usar a roupa que eu quiser. Eu posso usar vestido decotado, saia curta, shortinho atochado e aquele panaca não fala nada”, disse ela (de acordo com a minha mãe, é claro). E eu fiquei pensando: porra, se ela tem liberdade para usar a roupa que bem entender e o namorado não fala nada, por que ela está recriminando o comportamento do cara ao invés de comemorar a conduta dele? O que essa mulher quer afinal?
Algumas mulheres parecem demonstrar que gostam e até veneram a ideia de serem dominadas pelos seus “donos”, coisa que me deixa mais assustado ainda por saber que elas mesmas acreditam que devem se submeter aos desmandos do companheiro/namorado/marido porque “homem é assim mesmo”. Há cerca de quinze anos, época em que eu ainda era estudante secundarista, uma colega de escola tentou me convencer por inúmeros argumentos, retirados principalmente da Bíblia, de que a mulher tem que ser submissa ao homem. Diante dessa convicção, a única coisa que me restou foi ficar calado.
Em conversa com um amigo, ele disse que uma namorada dele queria porque queria que ele sentisse ciúmes dela – e desse demonstrações públicas disso, é claro. Quando ele disse que não faria escândalo público ao vê-la conversando com outro homem porque ele não é dono do corpo das mulheres que se relacionam com ele, e que, por conta disso, ela tem o direito de conversar com qualquer pessoa, ela simplesmente o dispensou. Eu nem ao menos a conheço, mas gostaria muito de saber com que tipo de homem ela está se envolvendo agora.
Esse discurso do ciúme como uma coisa boa e necessária a qualquer relacionamento é presente nas nossas vidas porque é reforçado a todo instante através das coisas mais banais (músicas, novelas, filmes, histórias românticas, romances de banca de revista...). São histórias tão batidas e rebatidas que as pessoas adotam isso como parâmetros para as suas vidas e não conseguem se relacionar com ninguém sem exercer controle sobre a outra/outro, sem exigir relatório detalhado e circunstanciado das atividades diárias, sem fuçar o celular, o email e o perfil da outra pessoa nas redes sociais. Em entrevista à Revista Sexy de novembro de 2011, Carol Nakamura, assistente de palco do Domingão do Faustão, declarou que só namora um homem que passar a senha do perfil dele no Facebook para ela. À pergunta “Você é ciumenta?”, ela respondeu: “Extremamente! Sou um pouco descontrolada quando fico com ciúme. Tenho que estar no controle das coisas. Tem gente que acha bizarro, mas eu não acho nada de mais. Só namoro com senha de Facebook. Se não faz nada de mais, por que eu não posso saber?”, declarou ela. Ainda bem que eu e ela vivemos em mundos totalmente distintos, pois eu não quero uma mulher dessa perto de mim nem com a porra!
Isso só reforça aquela idéia de posse sobre o outro. Que as pessoas, em um relacionamento afetivo-amoroso, têm de estar disponível aos nossos humores, satisfazer nossas vontades e caprichos a todo instante, incluindo aí nos completar e atender a todas as nossas necessidades. Aquele velho discurso da “alma gêmea”, da “outra metade da laranja”, tão conhecido entre nós.
Se, para ela, isso é normal, para mim, isso é inadmissível. Nunca fiz isso. Todas as mulheres que já se envolveram comigo tiveram total liberdade para vestir-se como quiserem e conversar com quem bem entenderem. Não costumo bisbilhotar o celular, a bolsa, os bolsos, nem furtar senhas de email e redes sociais de mulher nenhuma para saber se elas estão saindo com outros homens. Não fiz – e não faço – isso com elas para que elas nem pensem em fazer isso comigo. Esse papo de “quem ama sente ciúme” não cola. Eu acredito que quem ama respeita, e o fato de uma mulher estar se relacionando comigo não me dá o direito de exercer domínio sobre ela – nem a ela sobre mim, diga-se de passagem.
Como já disse, esse discurso é passado através das coisas mais banais. E vou citar exemplos: certa vez, estava escutando uma música de Belo em uma barraca de praia. Não sei o título da música (e nem me interessa); só gravei a parte em que ele diz que “atrás de um ditador, existe um grande amor”. Fiquei espantado com o que ouvi – e não era para menos. Afinal, ele está dizendo que um homem violento, que grita, ofende, maltrata, humilha e espanca a mulher; controla o corpo dela; diz o que ela deve ou não deve fazer; com quem ela deve ou não deve conversar; que tipo de roupa ela deve ou não deve vestir e estabelece horários para ela sair e voltar (com direito a cronometragem de tempo para punir o mínimo atraso) faz tudo isso... porque a ama! Ele age assim porque se importa e se preocupa com ela!! E esse discurso é introjetado na cabeça das pessoas por intermédio de uma música romântica, que fala de amor, com uma melodia agradável, voz gostosa, como se estivesse falando no ouvidinho dela...
Não sei se é nessa mesma música ou em outra que Belo inicia a canção pedindo perdão à namorada por ter mexido na bolsa e revirado a intimidade dela. Como sempre, com a mesma voz mansinha, falando no ouvidinho bem baixinho para ninguém ouvir. E ainda há mulheres que delirem e se derretam ao ouvir isso. Mais uma vez, o que me assusta é saber que muitas dessas mulheres se deixam manipular muito facilmente com besteirinhas do tipo que ouvem de muitos calhordas depois de uma discussão: “meu amor, me desculpe, eu só fiz isso porque eu te amo. Isso não vai mais acontecer, eu estava de cabeça quente”.
Em outro momento, escutei uma música do Exaltasamba em que Péricles canta: “se ela não tem dono/se ela não tem dono/ela é minha/ela é minha”. Trocando em miúdos: as mulheres são objetos passíveis de se tornarem propriedade de um homem. As mulheres têm de ter um dono, e as que não o tiverem estão automaticamente disponíveis. Eu só preciso pegar, levar e me apossar delas.
O machismo, o racismo e a homofobia são naturalizados nas mentes das pessoas assim mesmo: através de piadinhas, músicas, de palavras doces e palatáveis; de algo que as faça rir e delirar de emoção e prazer. E qualquer pessoa que se voltar contra isso será a mala-chata-insuportável da vez, que vê coisa onde não existe. Será possível que esse cara não desliga nem um minuto sequer? Nem na praia, de sunga, tomando sol e bebendo cerveja esse cara para um pouco? Tudo é racismo, tudo é preconceito. Porra, é só uma música, caralho!!!
Há também quem venha com o argumento de que "você não entendeu o que eu falei", "não foi isso que eu quis dizer"; "o que eu disse foi um equívoco, um comentário infeliz". Nós nunca entendemos nada. As pessoas nunca querem dizer o que dizem. Nunca sabemos interpretar porra de nada. 
Serão essas as críticas que eu receberei após a divulgação dessas maltraçadas linhas no mundo virtual. Podem vir, pois eu já estou preparado.

domingo, 13 de maio de 2012

Sobre o Dia das Mães. Sim, mas de que mães nós estamos falando?

Ontem, eu repassei uma postagem no Facebook sobre o Dia das Mães. Nela, havia um casal composto por um homem preto, uma mulher preta e uma criança preta com uma mensagem de felicitação pela data. Nada mais justo, pois, afinal de contas, o Dia das Mães caiu neste ano em 13 de maio, data em que se comemora 124 anos de abolição da escravatura (que eu prefiro chamar de 124 anos de chute na bunda), e que, por pressão dos movimentos sociais, foi ressignificada como Dia Nacional de Combate ao Racismo. E não só por isso. O que há de errado numa postagem de felicitação ao Dia das Mães que traga uma foto de pessoas pretas? O padrão é sermos caucasianos, de estirpe europeia?. Ou será que não existem mães pretas no nosso paraíso etnorracial?





Hoje, ao acessar o meu perfil, um conhecido meu escreveu: “Preto não é cor? Parabéns somente para as mulheres negras? Sem mais... aí não curti...”. Isso me enfureceu sobremaneira. Já dei uma resposta a ele lá mesmo no Facebook, mas resolvi dar uma resposta mais elaborada e publicar aqui para que mais pessoas tenham acesso.




Vou repetir o que eu já escrevi: qual é a sua, cara? Você já viu alguma propaganda do Dia das Mães com alguma negona? Alguém lembra que as mulheres pretas também têm filhos? Se as brancas não querem nem saber que existem mulheres pretas (a não ser quando elas precisam de uma escravinha para limpar a merda, cozinhar, lavar e passar os panos de bunda delas, é claro), por que raios você acha que eu deveria lembrar das mulheres brancas? 

O engraçado é que pessoas como você só reclamam da ausência de mulheres brancas quando há um anúncio só com mulheres pretas (que são raríssimos por sinal), mas eu nunca vi uma pessoa sentir a falta de mulheres pretas num anúncio só com mulheres brancas (isso me lembrou de um dos episódios da temporada 2012 do programa Esquenta, apresentado por Regina Casé, em que ela disse que estava sendo chamada de racista porque no programa dela só tinha preto, e que por isso ela resolveu levar algumas pessoas brancas ao programa para convencer o público do contrário, isto é, que ela não é racista). Eu sou filho de uma mulher preta, neto de uma mulher preta (de quem eu tenho e terei saudades eternas), conheço e trabalho com muitas mulheres pretas que são mães, e portanto eu estou prestando uma homenagem A ESSAS mulheres. Mulheres que são tratadas como se não existissem; que não tem direito a um pré-natal digno e não recebem sequer anestesia quando chega a hora de dar a luz seus filhos; que são sistematicamente maltratadas, agredidas, abandonadas e assassinadas pelos namorados e maridos (que são, na maioria dos casos, homens tão pretos quanto elas) e que por isso têm de se virar para trabalhar e sustentar as suas crianças; que não tem creche para colocar os filhos enquanto trabalham, e que por isso são obrigadas a deixar os filhos menores aos cuidados do irmão mais velho ou com a vizinha (quando elas acham uma vizinha que se disponha a fazer isso, porque senão elas terão de abandonar seus empregos e fazer um bico aqui e outro acolá pra garantir o pão daquele dia no sustento de sua cria); que não têm uma escola decente para os seus filhos estudarem e buscarem um futuro melhor (porque filho de preto tem mais é que trabalhar para ajudar no sustento da casa; esse negócio de estudar é invenção de moda; onde já se viu, preto querer estudar?; se o criouléu todo resolver virar doutor, quem vai lavar minha privada?); que, no dia de hoje, tiveram de aguentar todos os tipos possíveis e imagináveis de humilhações para visitar os seus filhos nos presídios e que também, neste exato momento, estão chorando e reconhecendo os seus filhos mortos nas geladeiras do Instituto Médico-Legal (o fato de a maioria da população carcerária e de cadáveres nos necrotérios ser de pessoas negras deve ser mera coincidência ou simples fatalidade, pois preto deve ser tudo bandido mesmo – e bandido bom é bandido morto). É para essas mulheres que eu estou falando. São essas as mulheres que eu estou homenageando.



Que discursinho mais democracia racial da p... Você está parecendo aqueles caras do Democratas que dizem que as cotas para negros nas universidades (cuja constitucionalidade foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal em decisão unânime nos dias 25 e 26 de abril últimos) não contemplam os brancos pobres. Afinal de contas, dizem esses canalhas, o nosso problema não é racial, e sim socioeconômico (como se o racismo não fosse um problema socioeconômico), em que uns tem muito e outros não têm nada, e esse lance de cotas deve agregar critérios sociais e não raciais. Não é mesmo?

Duas coisas: 1) ao contrário do que a midiona tenta fazer a população brasileira acreditar, os brancos pobres também estão sendo beneficiados pelas cotas; 2) os brancos pobres não ocupam o mesmo lugar que os pretos pobres, até porque os brancos pobres não se reconhecem como iguais aos pretos pobres. Numa sociedade racista como a nossa, em que o racismo é estrutural e regulador das nossas relações sociais, ser branco significa ter capital simbólico. Ou você nunca ouviu um branco pobre, favelado e subempregado olhar para a cara de um preto que têm as mesmas condições de vida que ele e dizer: “pelo menos eu não sou preto igual a você”? Mas vamos deixar o sistema de cotas de lado por enquanto, pois o assunto do texto é outro. 

Se não quiser curtir, não curta. Eu nunca tive a pretensão de agradar a todos mesmo. Faça o que você achar melhor. Pois eu não tenho a menor vontade de querer mudar a cabeça de ninguém através das coisas que eu posto nas redes sociais (até porque isso é impossível; eu só posso propor, a mudança de mentalidade é decisão de cada um e eu não posso determinar isso), ou até mesmo, fazer alguém enxergar melhor. Até porque a minha formação é de professor de história e não de médico oftalmologista.

Se não quer ver o que está para além do seu umbigo e da sua redoma existencial, pode me excluir. É muito mais sensato, ou muito menos cansativo pra você e pra mim.

Combinado?


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Reis e Ratos: puta desperdício de tempo


Sábado à tarde, estava em casa com a minha digníssima sem ter o que fazer e em busca de algum entretenimento. Devido à nossa vontade de sair e após alguns minutos sem nenhum indicativo de para onde ir, resolvemos rumar ao cinema para ver Reis e Ratos. Não havia lido nada sobre o filme: uma nota publicada numa revista, uma resenha do caderno cultural do jornal A Tarde, uma análise feita por algum crítico da moda ou coisa que o valha. Me limitei somente a uma propaganda que vi no Jornal da Metrópole e ao título do filme, que achei instigante. A única informação que busquei foi o elenco principal. Quando vi os nomes de Paula Burlamaqui, Rodrigo Santoro, Seu Jorge, Otávio Müller e especialmente de Selton Mello, concluí que seria bom arriscar. Quebrei a cara.

Putesgrila! O filme é confuso do começo ao fim (até o fim, eu já não digo porque saí antes. Pelo menos até a última cena que eu vi). Quando soube que a história estava periodizada na década de 1960, quando apareceram os primeiros personagens fazendo alusões à guerra contra o comunismo, o símbolo da foice e do martelo e os caracteres inicialmente no alfabeto cirílico e, logo em seguida, traduzidos para o alfabeto latino, pensei que o filme versaria sobre alguma coisa relacionada ao período da Guerra Fria, mundo bipolar, divisão do mundo entre capitalistas e comunistas, Estados Unidos de um lado e União Soviética do outro, essas coisas. De fato, o enredo do filme está situado nesse período histórico, mas eu não consegui ver a ligação entre uma coisa e a outra. Eu até me esforcei, mas não deu. Assisti ao filme durante mais de uma hora, mas, por não ter conseguido entender nada, joguei a toalha e casquei fora.

Eu não fui o único. A minha digníssima, cuja paciência é bem menor do que a minha, chegou a cochilar nas primeiras cenas por não aguentar tanta chatice, mas não debandou logo de cara após olhar para o lado, me ver concentrado, achar que eu estava entendendo alguma coisa e não querer estragar meu prazer (antes ela tivesse feito o contrário). Uma quantidade significativa de pessoas também debandaram da sala muito provavelmente por não terem compreendido porra nenhuma. Quando eu disse que estava “voando” e propus a debandada, ela aceitou imediatamente e, ato contínuo, “pegamos a pista”.

Eu até gosto do trabalho de Selton Mello; para mim, ele é um ator fantástico. As atuações dele em Meu Nome Não É Johnny e em Jean Charles foram memoráveis, mas é a terceira vez que eu saí puto do cinema por não ter conseguido entender a mensagem que ele quis passar. A primeira vez foi quando eu assisti a O Cheiro do Ralo, filme do qual eu não compreendi nada e não sei por onde começou, muito menos onde terminou. A segunda foi quando eu assisti a O Palhaço. Saí de casa cheio de expectativas: porra, deve ser legal, o primeiro filme dele como diretor, ainda mais contracenando com Paulo José, uma boa pedida, vou lá conferir. Resultado: me estrepei. A terceira (e, acredito eu, derradeira) foi no último sábado.

E não venham me dizer que o problema foi meu. Eu não sou o arauto da intelectualidade (estou longe disso), não sou cinéfilo (pelo menos não me considero assim), não sou crítico de cinema, nenhum José Wilker ou Rubens Ewald Filho da vida, mas também não sou nenhuma anta. Não sei vocês, mas eu, já há algum tempo, parei de pensar que a culpa é sempre minha por não ter entendido um filme ou um livro. A culpa pode ser também da pessoa que escreveu, por que não? As pessoas falam a partir de códigos que são inteligíveis (eu tenho de ter a capacidade de entender, mas a pessoa que escreve ou produz também tem de ser clara ao emitir a mensagem). Se a diretora Paula Lavigne e a equipe de produção do filme usou uma linguagem confusa demais, acessível somente a elas mesmas e olhe lá, eu sou culpado por não ter captado o que ela tentou dizer (se é que ela quis dizer alguma coisa)? Devo me considerar intelectualmente limitado por isso? Eu sei que não terei tempo de vida para entender tudo (e nem sei se isso é necessariamente bom), mas também não acredito que devo pensar que sou uma besta quadrada por ter passado mais de uma hora vendo uma porra de um filme e não ter assimilado nada do que vi. E mais: além de o meu senso pretensamente intelectualóide não estar ligado o tempo todo (será mesmo?), eu estou convencido de que há coisas na vida que não foram feitas para serem entendidas. Ou eu aceito, ou eu não aceito. Eu penso assim, e ninguém tem obrigação de concordar comigo (e nem o direito de me xingar por eu pensar dessa forma).

Não vou perder um minuto do meu sono sofrendo por não ter conseguido entender um filme ou um livro. Já perdi, mas não perco e não perderei mais. Eu não consegui entender esse, mas já entendi e tenho certeza de que ainda entenderei muitos outros. A vida é muito curta.

Bola pra frente que atrás vem gente. Eu já perdi muitas batalhas, mas as que entram – e entrarão - no meu currículo são as que eu ganhei e as que eu ainda vou ganhar. Viremos a página e prossigamos.

Para finalizar: eu não sou nenhum ditador. Eu não escrevi esse texto para dizer o que as outras pessoas devem fazer. Se quiserem ignorar o que eu disse e ir ao cinema ver esse filme, vão e vejam. Afinal, cada um tem o direito de fazer o que quiser (e esse texto não é nenhuma resenha fílmica, ou pelo menos não o escrevi com esse caráter). Não é porque eu não entendi o filme que ninguém mais vai entender. Como já disse Martha Medeiros, “eu não sirvo de exemplo para nada. Mas se alguém quer saber se isso é possível, me ofereço como piloto de testes”.